National Geographic
Foto mostra a diferença entre um solo cultivado
organicamente (esquerda) e outro que recebeu a adição de adubos
químicos ou agrotóxicos
Os indicadores que apontam o pujante agronegócio como a galinha dos
ovos de ouro da economia não incluem um dado relevante para a saúde: o
Brasil é maior importador de agrotóxicos do planeta. Consome pelo menos
14 tipos de venenos proibidos no mundo, dos quais quatro, pelos riscos à
saúde humana, foram banidos no ano passado, embora pesquisadores
suspeitem que ainda estejam em uso na agricultura.
Em 2013 foram consumidos um bilhão de litros de agrotóxicos no País –
uma cota per capita de 5 litros por habitante e movimento de cerca de
R$ 8 bilhões no ascendente mercado dos venenos.
Dos agrotóxicos banidos, pelo menos um, o Endosulfan, prejudicial aos
sistemas reprodutivo e endócrino, aparece em 44% das 62 amostras de
leite materno analisadas por um grupo de pesquisadores da Universidade
Federal do Mato Grosso (UFMT) no município de Lucas do Rio Verde, cidade
que vive o paradoxo de ícone do agronegócio e campeã nacional das
contaminações por agrotóxicos. Lá se despeja anualmente, em média, 136
litros de venenos por habitante.
Na pesquisa coordenada pelo médico professor da UFMT Wanderlei
Pignati, os agrotóxicos aparecem em todas as 62 amostras do leite
materno de mães que pariram entre 2007 e 2010, onde se destacam, além do
Endosulfan, outros dois venenos ainda não banidos, o Deltametrina, com
37%, e o DDE, versão modificada do potente DDT, com 100% dos casos. Em
Lucas do Rio Verde, aparecem ainda pelo menos outros três produtos
banidos, o Paraquat, que provocou um surto de intoxicação aguda em
crianças e idosos na cidade, em 2007, o Metamidofóis, e o Glifosato,
este, presente em 70 das 79 amostras de sangue e urina de professores da
área rural junto com outro veneno ainda não proibido, o Piretroides.
Na lista dos proibidos em outros países estão ainda em uso no Brasil
estão o Tricolfon, Cihexatina, Abamectina, Acefato, Carbofuran, Forato,
Fosmete, Lactofen, Parationa Metílica e Thiram.
Chuva de lixo tóxico
“São lixos tóxicos na União Europeia e nos Estados Unidos. O Brasil
lamentavelmente os aceita”, diz a toxicologista Márcia Sarpa de Campos
Mello, da Unidade Técnica de Exposição Ocupacional e Ambiental do
Instituto Nacional do Câncer (Inca), vinculado ao Ministério da Saúde.
Conforme aponta a pesquisa feita em Lucas do Rio Verde, os agrotóxicos
cancerígenos aparecem no corpo humano pela ingestão de água, pelo ar,
pelo manuseio dos produtos e até pelos alimentos contaminados.
Venenos como o Glifosato são despejados por pulverização aérea ou com
o uso de trator, contaminam solo, lençóis freáticos, hortas, áreas
urbanas e depois sobem para atmosfera. Com as precipitações
pluviométricas, retornam em forma de “chuva de agrotóxico”, fenômeno que
ocorre em todas as regiões agrícolas mato-grossenses estudadas. Os
efeitos no organismo humano são confirmados por pesquisas também em
outros municípios e regiões do país.
O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para),
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), segundo a
pesquisadora do Inca, mostrou níveis fortes de contaminação em produtos
como o arroz, alface, mamão, pepino, uva e pimentão, este, o vilão, em
90% das amostras coletadas. Mas estão também em praticamente toda a
cadeia alimentar, como soja, leite e carne, que ainda não foram
incluídas nas análises.
O professor Pignati diz que os resultados preliminares apontam que
pelo menos 30% dos 20 alimentos até agora analisados não poderiam sequer
estar na mesa do brasileiro. Experiências de laboratórios feitas em
animais demonstram que os agrotóxicos proibidos na União Europeia e
Estados Unidos são associados ao câncer e a outras doenças de fundo
neurológico, hepático, respiratórios, renais e má formação genética.
Câncer em alta
A pesquisadora do Inca lembra que os agrotóxicos podem não ser o
vilão, mas fazem parte do conjunto de fatores que implicam no aumento de
câncer no Brasil cuja estimativa, que era de 518 mil novos casos no
período 2012/2013, foi elevada para 576 mil casos em 2014 e 2015. Entre
os tipos de câncer, os mais suscetíveis aos efeitos de agrotóxicos no
sistema hormonal são os de mama e de próstata. No mesmo período, segundo
Márcia, o Inca avaliou que o câncer de mama aumentou de 52.680 casos
para 57.129.
Na mesma pesquisa sobre o leite materno, a equipe de Pignati chegou a
um dado alarmante, discrepante de qualquer padrão: num espaço de dez
anos, os casos de câncer por 10 mil habitantes, em Lucas do Rio Verde,
saltaram de três para 40. Os problemas de malformação por mil nascidos
saltaram de cinco para 20. Os dados, naturalmente, reforçam as suspeitas
sobre o papel dos agrotóxicos.
Pingati afirma que os grandes produtores desdenham da proibição dos
venenos aqui usados largamente, com uma irresponsável ironia: “Eles
dizem que não exportam seus produtos para a União Europeia ou Estados
Unidos, e sim para mercados africanos e asiáticos.”
Apesar dos resultados alarmantes das pesquisas em Lucas do Rio Verde,
o governo mato-grossense deu um passo atrás na prevenção,
flexibilizando por decreto, no ano passado, a legislação que limitava a
pulverização por trator a 300 metros de rios, nascentes, córregos e
residências. “O novo decreto é um retrocesso. O limite agora é de 90
metros”, lamenta o professor.
“Não há um único brasileiro que não esteja consumindo agrotóxico.
Viramos mercado de escoamento do veneno recusado pelo resto do mundo”,
diz o médico Guilherme Franco Netto, assessor de saúde ambiental da
Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz). Na sexta-feira, diante da probabilidade
de agravamento do cenário com o afrouxamento legal, a Fiocruz emitiu um
documento chamado de “carta aberta”, em que convoca outras instituições
de pesquisa e os movimentos sociais do campo ligados à agricultura
familiar para uma ofensiva contra o poder (econômico e político) do
agronegócio e seu forte lobby em toda a estrutura do governo federal.
Reação da Ciência
A primeira trincheira dessa batalha mira justamente o Palácio do
Planalto e um decreto assinado, no final do ano passado, pela presidente
Dilma Rousseff. Regulamentado por portaria, a medida é inspirada numa
lei específica e dá exclusividade ao Ministério da Agricultura _
histórico reduto da influente bancada ruralista no Congresso _ para
declarar estado de emergência fitossanitária ou zoossanitária diante do
surgimento de doenças ou pragas que possam afetar a agropecuária e sua
economia.
Essa decisão, até então era tripartite, com a participação do
Ministério da Saúde, através da Anvisa, e do Ministério do Meio
Ambiente, pelo Ibama. O decreto foi publicado em 28 de outubro. Três
dias depois, o Ministério da Agricultura editou portaria declarando
estado de emergência diante do surgimento de uma lagarta nas plantações,
a Helicoverpa armigera, permitindo, então, para o combate, a importação
de Benzoato de Emamectina, agrotóxico que a multinacional Syngenta
havia tentado, sem sucesso, registrar em 2007, mas que foi proibido pela
Anvisa por conter substâncias tóxicas ao sistema neurológico.
Na carta, assinada por todo o conselho deliberativo, a Fiocruz
denuncia “a tendência de supressão da função reguladora do Estado”, a
pressão dos conglomerados que produzem os agroquímicos, alerta para os
inequívocos “riscos, perigos e danos provocados à saúde pelas exposições
agudas e crônicas aos agrotóxicos” e diz que com prerrogativa exclusiva
à
Agricultura, a população está desprotegida.
A entidade denunciou também os constantes ataques diretos dos
representantes do agronegócio às instituições e seus pesquisadores, mas
afirma que com continuará zelando pela prevenção e proteção da saúde da
população. A entidade pede a “revogação imediata” da lei e do decreto
presidencial e, depois de colocar-se à disposição do governo para
discutir um marco regulatório para os agrotóxicos, fez um alerta
dramático:
“A Fiocruz convoca a sociedade brasileira a tomar conhecimento sobre
essas inaceitáveis mudanças na lei dos agrotóxicos e suas repercussões
para a saúde e a vida.”
Para colocar um contraponto às alegações da bancada ruralista no
Congresso, que foca seu lobby sob o argumento de que não há nexo
comprovado de contaminação humana pelo uso de veneno nos alimentos e no
ambiente, a Fiocruz anunciou, em entrevista ao iG, a criação de um grupo
de trabalho que, ao longo dos próximos dois anos e meio, deverá
desenvolver a mais profunda pesquisa já realizada no país sobre os
efeitos dos agrotóxicos – e de suas inseparáveis parceiras, as sementes
transgênicas – na saúde pública.
O cenário que se desenha no coração do poder, em Brasília, deve
ampliar o abismo entre os ministérios da Agricultura, da Fazenda e do
Planejamento, de um lado, e da Saúde, do Meio Ambiente e do
Desenvolvimento Agrário, de outro. Reflexo da heterogênea coalizão de
governo, esta será também uma guerra ideológica em torno do modelo
agropecuário. “Não se trata de esquerdismo desvairado e nem de
implicância com o agronegócio. Defendemos sua importância para o país,
mas não podemos apenas assistir à expansão aguda do consumo de
agrotóxicos e seus riscos com a exponencial curva ascendente nos últimos
seis anos”, diz Guilherme Franco Netto. A queda de braços é, na
verdade, para reduzir danos do modelo agrícola de exportação e aumentar o
plantio sem agrotóxicos.
Caso de Polícia
“A ciência coloca os parâmetros que já foram seguidos em outros
países. O problema é que a regulação dos agrotóxicos está subordinada a
um conjunto de interesses políticos e econômicos. A saúde e o ambiente
perderam suas prerrogativas”, afirma o pesquisador Luiz Cláudio
Meirelles, da Fiocruz. Até novembro de 2012, durante 11 anos, ele foi o
organizador gerente de toxicologia da Anvisa, setor responsável por
analisar e validar os agrotóxicos que podem ser usados no mercado.
Meirelles foi exonerado uma semana depois de denunciar complexas
falcatruas, com fraude, falsificação e suspeitas de corrupção em
processos para liberação de seis agrotóxicos. Num deles, um funcionário
do mesmo setor, afastado por ele no mesmo instante em que o caso foi
comunicado ao Ministério Público Federal, chegou a falsificar sua
assinatura.
“Meirelles tinha a função de banir os agrotóxicos nocivos à saúde e
acabou sendo banido do setor de toxicologia”, diz sua colega do Inca,
Márcia Sarpa de Campos Mello. A denúncia resultou em dois inquéritos, um
na Polícia Federal, que apura suposto favorecimento a empresas e
suspeitas de corrupção, e outro cível, no MPF. Nesse, uma das linhas a
serem esclarecidas são as razões que levaram o órgão a afastar
Meirelles.
As investigações estão longe de terminar, mas forçaram já a Anvisa –
pressionada pelas suspeitas –, a executar a maior devassa já feita em
seu setor de toxicologia, passando um pente fino em 796 processos de
liberação avaliados desde 2008. A PF e o MPF, por sua vez, estão
debruçados no órgão regulador que funciona como o coração do agronegócio
e do mercado de venenos.
por iG São Paulo